terça-feira, 26 de julho de 2011

O gato de olhos dourados



Um gatinho abandonado, um gatinho que chegou ali sem que se soubesse como, um gatinho esquecido prostrava-se diante de mim. Estava magro e sujo, mas seus patéticos olhos dourados pediam socorro de um modo simultaneamente imperioso e confiante.
O bichano me olhava com intensidade. Como pudera chegar ali? Doente, coberto de feridas, recém-desmamado, atirado na praia, quem sabe, por um pescador impaciente, devia ter vagado muito tempo, animalzinho minúsculo, sem eira nem beira, abandonado num mundo indiferente à sua existência insignificante, ameaçado pelo mar, pela areia, pelas habitações humanas, pelos passos dos homens, demasiado fraco para encontrar o próprio alimento e disputá-lo com os outros gatos e cães. De etapa em etapa, conseguira insinuar-se para dentro de minha casa, depois para meu quarto, talvez apenas à procura de sombra e calma para morrer.
Agora me olhava sentado, e parecia indagar-se sobre o socorro supremo que de mim podia esperar. Reuniu as últimas forças para miar. O som que conseguiu emitir foi rouco, quase inaudível. Levantei a cabeça e examinei o gatinho um instante. Já estava tão pouco vivo o animal, que pensei estar vendo coisas.
Ele tentou miar mais uma vez e uma espécie de desespero atravessou-lhe o olhar dourado. Inclinei-me então para ele.
– Mas de onde é que estás saindo, infeliz? – exclamei, levantando-o nas mãos, leve como uma pluma. O gato agarrou-se imediatamente à minha camisa com as garrazinhas frágeis e se pôs a ronronar com uma força inesperada para um corpo tão débil.
“Ah, tu me viste!”, parecia dizer. “Não me rejeites, te peço.”
“Alguém deve tê-lo abandonado.”, pensei, “ Está morrendo de fome e fraqueza.”
Levantei-me e fui até a cozinha. No fundo de uma tigela havia um pouco de leite. O gato tomou-o, mas não avidamente, pois estava sem forças.
Segurava-o em meu colo maquinalmente enquanto ia e vinha pelo aposento, e este, de olhos fechados, se aninhava em meu ombro numa estranha atitude de amor e abandono. Sentia-se que pelo contato de minhas mãos a vida lhe voltava.
 – Não passas de um animalzinho inocente e corajoso, que só deseja viver. Não temas nada, cuidarei de ti e te curarei.
O gato não se mexera desde que o instalara sobre a coberta, enroscado na beatitude de um conforto de que não desfrutava há muito tempo e talvez nunca houvesse desfrutado. Imóvel, meigo, paciente, quase imaterial na sua pequenez e fragilidade doente, ele mal parecia existir. No entanto, quando falava com ele, punha-se a ronronar com força, exprimindo o melhor que podia a sua gratidão e felicidade.
Por puro acaso, depois de uma dura perambulação, ele me encontrou, e eu me tornara o seu céu, seu horizonte, sua certeza. Esperava tudo de mim, que tivera piedade dele, e sabia que não se decepcionaria em absoluto. Naquela noite pode dormir em paz e seguro do mundo.
Na manhã seguinte, ao despertar, a primeira coisa que notei foi a ausência do felino de cima do pedaço de coberta que lhe dera. Talvez, já revigorado e com as forças restabelecidas, ele tenha saído a explorar o lugar, portanto, não me preocupei de todo.
Entretanto, ao longo do dia, as horas passaram e o gatinho não retornou. O que teria acontecido? Teria sido tudo um sonho? Ilusão de minha mente cansada? Avistei a tigela na qual outrora punha leite para o gato, e tive certeza de não ter sido tapeado pela minha cabeça. O gato simplesmente desaparecera. Como? Da mesma maneira que chegara. Sem que ninguém o notasse, tão insignificante era em sua estrutura mirrada.
Alguns dias depois fui caminhar pela praia e resolvi dar um mergulho. Ao tornar à praia, topei quase que de imediato com algo de minúsculo e vivo que se debatia entre os sargaços.
– Mas o que é isto? Um caranguejo! Meu Deus, é o meu gatinho! O que está fazendo aqui? Estava tão doente!
Recolhi-o, e, coberto de espuma e areia que lhe colava os pêlos aos ossinhos frágeis, o gato parecia de novo a ponto de expirar. Mas, assim como na primeira vez, seu olhar dourado era súplice. Carreguei-o em meus braços e levei-o novamente para casa.
Depois de lhe dar de comer, o tranquei em meu quarto. Com a cauda ereta, ele foi imediatamente em direção ao pedaço de coberta que lhe servira de cama na primeira noite em que surgira no interior daquele mesmo cômodo. Tinha ares de proprietário. Instalou-se e pôs-se a se lamber com cuidado.
O tempo passou, o gatinho cresceu, forte e bonito, e não lembrava em nada a pequena forma raquítica que era quando surgira em minha vida.
O bichano acompanhava tudo o que fazia e meus gestos com o maior interesse. Seguia com paixão os meus dedos sobre a Bíblia sempre que me sentava à ler, e dava uma patada furtiva, como se quisesse surpreender em sua agilidade aqueles animaizinhos móveis e infatigáveis: meus dedos. Depois esquivava-se com um salto. Conseguiu agarrar uma caneta, a fez rolar através do quarto, permaneceu imóvel, com o rabo ereto, diante do móvel embaixo do qual o objeto parecia haver-se refugiado.
Quando ia me preparar para dormir, ele me rodeada, impossibilitando-me de avançar até o leito. Depois ele mergulhava sobre a cama e se envolvia nos lençóis. Aqui e ali sua cabecinha reaparecia triunfalmente. E eu ria de suas estripulias.
E assim ele vivia, esquecendo-se de todo o mal que sofrera no início de sua existência. Já não se lembrava mais de onde viera e de tudo o que passara. Mas tinha de mantê
Certo dia, ao perceber sua ânsia de sair e explorar a mesa alheia, tranquei-o dentro do quarto. Miava a plenos pulmões o gatinho. Mas não adiantava. No dia seguinte ele voltava a fugir, e retornava coberto de ferimentos e com o olhar mais arrependido do mundo.
Tive de tomar medidas drásticas. Pus-lhe uma coleira e prendi-o numa corrente na parede da garagem, do lado de fora. O gato ficou quase louco ao ter sua liberdade tomada de si, impossibilitado de voltar a vadiar pelas ruas e roubar um pedaço apenas de um bom bife da mesa da vizinha.
Depois de alguns dias, sempre que me via, seu pelo se eriçava e ele cuspia, furioso, me fulminando com seus olhos dourados. Até que, em dado momento, ao me aproximar, traiçoeiramente ele me mordeu a mão. Não tive saída. Soltei-o. tentei preservá-lo de vir a sofrer na mão das outras pessoas, mas ele preferiu a louca aventura de um dia, a viver em segurança comigo, dentre de casa.
Mais tarde, naquele mesmo dia, tive de cavar um buraco para enterrá-lo. Morrera ao comer a carne envenenada que a vizinha lhe preparara.

Ao me lembrar da história deste gatinho, vejo-me a mim neste triste contexto. E da maneira que eu cheguei à presença de Deus, machucado, ferido, sem forças nem mesmo para clamar. Necessitado de socorro e da providência divina. Lembro-me também, das vezes que fugi da segurança da casa do Pai, e me lancei à procura de um pedaço de carne.
Quantas vezes me irritei com Deus por não entender, em minha ignorância mortal, que os desertos e vales que ele me obrigava a passar, serviam para me preservar a vida!!
Quantas vezes fui capaz de morder a mão, a mesma mão daquele que me estendeu a Salvação!
Quantas vezes, arrependido, recorri desesperadamente à bondade dEle!
Quantas vezes também pude desfrutar da intimidade com Deus, e Ele se revelou à mim, fazendo-me esquecer de todo o meu sofrimento nesta terra!
Quantas vezes também o inimigo me jogou pedras e me acusou dos meus erros, e Ele, diligentemente me defendeu e me protegeu debaixo de suas asas!
Somente pela graça e misericórdia de Jesus para com a minha vida, eu pude me livrar das garras afiadas da morte. Diante destes fatos, só posso exprimir louvores e glórias à Deus, por nunca ter desistido de mim.

 Thiago Pereira


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